terça-feira, 9 de junho de 2015


DEPOIMENTO DE MUTILADO DO MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJAS.

Depoimento de José Carlos Agarito - SOBREVIVENTE

                         
           Depoimento de José Carlos Agarito, 27
  

   Você vive como?
Eu trabalho na roça. Não trabalho muito, mas faço um esforço. A cabeça dói. Eu vou pelejando a vida até onde Deus quiser. Estou lutando. Ontem mesmo eu estava plantando arroz, amanhã eu vou de novo. Vou sofrendo até quando Deus quiser. Os médicos nos mandam sentar, perguntam o que a gente tem e entregam um remédio. É a mesma coisa que se eu estivesse comendo farinha. Eu começo a tomar, vejo que não serve para nada e deixo pra lá.
        Como você se lembra do dia do Massacre?
Nós estávamos em uma negociação para conseguir uns ônibus para Belém ou para Marabá. Pedimos 50 ônibus e eles disseram que iam ver se conseguiam. Eles voltaram e disseram que não tinham conseguido. Aí o major Oliveira disse “é melhor mesmo vocês fecharem a estrada que com pressão vocês conseguem”. Caímos na cantada do infeliz e por quatro horas fechamos a estrada. Ninguém passava. Então os ônibus chegaram, mas cheios de polícia. Não teve conversa. Chegaram jogando bomba e atirando.
Eu estava no meio. Corria de um lado para o outro. Olhei pra uma companheira que pediu ajuda. Ela estava morrendo e eu em cima. Acertaram um tiro em mim e eu caí no chão. Foi um sofrimento muito feio. Eu sei que até hoje nós sofremos, querendo trabalhar e sem poder. O major Oliveira ligou pra coronel Pantoja para ver o que fazer. O Pantoja ligou para o Almir Gabriel, governador do estado na época, e falou “rapaz é o seguinte, eu quero que vocês tirem estes homens da estrada. Façam do jeito de vocês”. O único jeito que eles acharam foi esse. Quando eu já estava baleado, eles nos mandaram deitar e fechar os olhos. Falaram para nós caçarmos empregos e nos mandaram correr. Pegaram um companheiro nosso, o Oziel, e terminaram de matar ele no hospital. Eles deram um tiro nele dentro do hospital e ele gritando o nome do movimento, “MST, MST”.
      Você acredita no número oficial?
Não. Eu acredito que foram mais mortos. Eu acho que morreram mais de cem pessoas. Eu queria saber sobre as crianças e as mulheres que estavam lá. Nenhuma apareceu, só os homens. Muita gente diz que viu um caminhão e um carro pequeno, cobertos de lona preta e sangue, descendo para o sentido de Xinguara.


          O-que-você-cente?
Nós tentamos esquecer, mas não esquecemos não. Sinto muita dor, muito sofrimento. É uma coisa que vai ficar para os filhos, para os netos, para o resto da vida. A gente não esquece não. Um sofrimento muito magoado mesmo.
         A luta valeu a pena?
Valeu porque nós recebemos um pedacinho de terra. Nós colhemos arroz, milho, feijão, mandioca, melancia, abóbora. Na época em que eu morava na cidade, se nós quiséssemos comer uma abóbora, uma melancia, um milho, e não tivéssemos dinheiro, não comíamos. Ficávamos só olhando, com gosto na boca. Hoje não. Hoje temos tudo.
Passaria por tudo de novo?
Passaria não. O sofrimento foi muito grande.
Até hoje ninguém foi preso?
Não. Diz que foram julgados uns cabras lá, mas não tem ninguém preso. A minha vontade é ver os comandantes presos. O Almir Gabriel, o major Oliveira e o coronel Pantoja. Isso eu queria ver. Queria que o Almir Gabriel ficasse por nossa conta. Almir Gabriel. Eu ia trazer ele aqui para dentro da vila e fazer ele trabalhar um ano para nós, para ele saber porque nós estávamos lá na curva do S. Cortar arroz, arrancar mandioca, fazer farinha, assim ele iria saber que este povo queria trabalhar, não vagabundear. Para ele ficar preso não funciona. Ele ia ficar sem ver o sol, sem ver nada. Mas a televisão e o celular estão lá.
       Você recebeu indenização?
Ainda não. Estou recebendo um dinheirinho, mas dizem que nós ganhamos na justiça. Até agora, nada.


SOBREVIVENTE DO MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJAS PA



Depoimento de Avelino Germiniano - SOBREVIVENTE


                              Depoimento de Avelino Germiniano, 51 anos
         Como você lembra do Massacre?
Nós estávamos caminhando para Marabá (PA) para pegar o ônibus para a sede do Incra, porque já estávamos muito cansados. Vínhamos do km 30 e as crianças que acompanhavam já não estavam agüentando mais a viagem. Por isso resolvemos parar a marcha e interromper o trânsito para arrumarmos um transporte. Por volta de 4h00 chegaram os policias falando que iam arrumar um transporte. Em seguida, atravessaram aquele caminhão para o lado de Marabá...
       Foram eles que atravessaram aquele caminhão?
Foi, aquilo já era combinado. Eles atravessaram aquele caminhão para, em seguida, se proteger com ele. Então chegou um oficial de Marabá dizendo que já estava tudo combinado, que os ônibus viriam. Ficamos na expectativa, achando que ganharíamos mesmo os ônibus. Mais ou menos às 5h00, vimos os caminhões de Marabá e de Parauapebas. Eles chegaram dos dois lados e nós ficamos no meio. Não tínhamos condição de fazer nada. Um monte de policiais armados e a arma que nós tínhamos era foice e facão, machado. Nós resolvemos não desocupar a pista. Eles deram um tiro para intimidar e já mataram um dos nossos, o Silvinho.
       O senhor viu?
Eu vi tudo. Quando eles mataram o Silvinho, não perdoaram mais ninguém. Como eu já tinha tomado quatro tiros, fui tentando me afastar. O que nós víamos era gente baleada, caindo morta. A alternativa era correr e me esconder embaixo de um caro que tinha parado na pista, para ver se me protegia. Foi onde encontramos quatro companheiros, todos baleados. Quando me deitei ali, meu filho estava junto, os policiais me pegaram como um dos líder do Movimento, me algemaram e me levaram. Eu já tinha tomado nove tiros. Eu não podia mais andar. Então eles me colocaram dentro de um ônibus de Marabá, pegaram um pau e me bateram no ombro e na cabeça. Falaram que eu tinha que contar os nomes dos líderes.
       Isso dentro do ônibus?
É dentro do ônibus. A Maria, uma repórter, estava com a gente dentro do ônibus. Eles conseguiram ligar a filmadora e filmaram o sangue que escorria das minhas pernas, do meu corpo. De repete, chegou um policial e tomou a câmera deles. Ela falou para ele que se me matassem, eles iam ter com ela. Fiquei dentro do ônibus preso, algemado, com a mão pra trás.
    

        O senhor tomou tiro onde?
Nas costas, no peito, na perna... Graças a deus não foi nenhum que me ofendesse para matar. Fiquei dentro do ônibus até a hora que eu vi que acabou. Então me botaram no ônibus de Parauapebas. O policial de Marabá queria me matar. Às 18h00, quanto já estava escuro, ele e pegou um fuzil e botou na minha testa. Disse “deixa esse daqui comigo”. Minha salvação foi quando um lá de Parauapebas disse “não mata esse aí não. Tira a algema dele e leva ele lá para dentro do ônibus”. Eu nem tinha mais movimento no braço porque algema já estava dentro do osso. Me levaram para Curionópolis e me deixaram na cadeia.
       E nesse período o senhor não teve nenhuma assistência médica?
Lá o delegado disse “esse aí não pode deixar vivo não”. Eu disse que podiam me matar, não me importava mais. Chegou um pessoal de Belém e uma mulher veio medir minha pressão e disse que precisava ser levado imediatamente. Acho que eu tinha perdido muito sangue e minha pressão estava baixa. Quando eu fui pro hospital, minha mulher estava lá me esperando. Mas a primeira notícia que era que eu tinha morrido no primeiro confronto. Eu e meu filho fomos depor do Fórum de Curionópolis e só depois de muitos dias que começaram o tratamento em Belém.. Me levaram para lá de avião e eu fui tirando as balas aos poucos. Até hoje eu ainda tenho três.
      O senhor consegue trabalhar bem hoje?
Não. Esse braço, por exemplo, eu não posso levantar muito. Eu não sou mais aquela pessoa que podia sair com a foice e machado roçando pino e madeira. Nem laçar um gado eu posso. Eu não dou conta.
       Vocês receberam alguma ajuda do governo?
Não. Há três anos vivemos de uma tutela de 300 reais do estado. Ganhamos ela na Justiça até que a indenização fosse resolvida. Cortaram até o tratamento médico que nós tínhamos direito. Tem gente aqui que não consegue se movimentar direito, com problemas demais. Se não recebermos tratamento digno, eu não sei como é que vamos fazer.
Qual o seu sentimento ao saber que hoje não tem ninguém na cadeia por causa desse massacre?
O sentimento é que todos fomos mortos e baleados também. Depois de tudo o que fizeram conosco não ter ninguém na cadeia... é por isso que não podemos fazer mais nenhuma declaração sobre eles. A corda arrebenta sempre do lado mais fraco, e nós não somos os fortes.
      O senhor acredita na justiça para esse caso?
Acho difícil. A indenização já ajudaria muito. Nunca vamos nos recuperar, mas poderíamos melhorar algumas coisas, principalmente a nossa saúde. Eu, por exemplo, se eu pegasse esse dinheiro, iria para fora do estado me tratar.

         O senhor já conquistou a terra, uma casa. A luta vale a pena?
A luta é sagrada. Conseguir um pedaço de chão para quem não tem onde sobreviver é muito importante. O Movimento mata a fome de muita gente. Se todo mundo acreditar que vale a pena, vamos em frente que não vai acabar por aí não.